I
Não é de admirar que pessoas conscienciosas achem difícil crer no Evangelho de Jesus, pois as realidades ali apresentadas ultrapassam o entendimento humano. Mas é triste ver-se que muitos tomam a fé mais difícil do que necessariamente é, encontrando problemas nos lugares errados.
Tome por exemplo, a expiação. Muitos encontram dificuldade nesse ponto. Como, perguntam eles, podemos crer que a morte de Jesus de Nazaré – um homem morrendo numa cruz romana – tira os pecados do mundo? Como pode essa morte ter qualquer ligação com o perdão de Deus para nossos pecados hoje? Ou, veja a ressurreição, que para muitos é uma pedra de tropeço. Como, perguntam, podemos crer que Jesus se levantou fisicamente da morte? Na verdade, é difícil negar que o túmulo estava vazio – mas certamente a dificuldade em crer que Jesus se levantou dele em um corpo eterno é ainda maior. Uma teoria de ressurreição temporária depois de um desmaio, ou do roubo do corpo, não será mais fácil de acreditar do que a doutrina cristã da ressurreição?
Ou, ainda, veja o nascimento virginal, que tem sido largamente negado pelos protestantes deste século. As pessoas perguntam: Como pode alguém crer em tal anomalia biológica'! E os milagres do evangelho? Muitos acham neles uma fonte de dificuldades. Tendo como certo que Jesus realizou curas (é difícil duvidar que Ele o tenha feito devido as evidências, e de qualquer modo a história tem conhecido outros curadores); como é possível crer que Ele tenha andado sobre as águas, ou alimentado cinco mil pessoas, ou ressuscitado mortos? Histórias como essas são realmente inacreditáveis. Com estes e outros problemas similares muitas mentes à margem da fé estão hoje profundamente perplexas.
Mas a dificuldade real, por causa do mistério supremo com que o evangelho nos confronta, não está de modo algum aqui. Não se encontra na mensagem de expiação da Sexta-feira santa, tem na mensagem da ressurreição da Páscoa, mas na do Natal como a encarnação de Deus. A afirmativa cristã realmente estonteante é que Jesus de Nazaré foi Deus feito homem – que a segunda pessoa da Trindade tornou-se o "segundo homem" (I Cor. 15:47), determinando o destino humano, o segundo representante da raça humana, e que Ele tomou a forma humana sem perder a divindade de modo que Jesus de Nazaré era tão completo e totalmente divino quanto humano.
Aqui há dois mistérios pelo preço de um – a pluralidade de pessoas dentro da unidade de Deus, e a união da divindade e da humanidade na pessoa de Jesus. É aqui, no acontecimento do primeiro Natal que jaz a mais profunda e impenetrável revelação do cristianismo. "O Verbo se fez carne" (João 1:14); Deus tornou-se homem; o Filho Divino tornou-se judeu; o Todo-Poderoso apareceu na terra como um bebê indefeso, incapaz de outra coisa qualquer além de ficar deitado, olhar, mexer-se e fazer ruídos, precisando ser alimentado e trocado, e ensinado a falar como qualquer outra criança. E não havia ilusão ou decepção nisto, a infância do Filho de Deus foi uma realidade. Quanto mais se pensa sobre isso, mais surpreendente se torna. Nada na ficção é tão. fantástico como a verdade da encarnação.
Esta é a verdadeira pedra de tropeço do cristianismo. É nela que fracassam judeus, maometanos, unitarianos, testemunhas de Jeová e muitos outros que sentem as dificuldades acima mencionadas (o nascimento virginal, os milagres, o sacrifício e a ressurreição). E por causa da descrença, ou pelo menos da crença errada a respeito da encarnação que geralmente surgem dificuldades em outros pontos da história do evangelho. Mas no momento em que a encarnação é compreendida, essas outras dificuldades desaparecem.
Se Jesus tivesse sido apenas um homem religioso e notável, seria imensamente difícil crer naquilo que o Novo Testamento relata sobre sua vida e obra. Mas se Jesus era a mesma pessoa que o Verbo eterno, o agente do Pai na criação, "pelo qual também fez o Universo" (Heb. 1:2), não é de admirar que novos atos de força criadora marcaram sua vinda a este mundo, sua vida aqui e sua partida daqui. Não é estranho que Ele, o autor da vida se levante da morte. Se Ele era realmente o Filho de Deus, é mais surpreendente que morresse do que ressuscitasse.
"Todo este mistério! Morre o Imortal", escreveu Wesley; mas não há mistério comparável na ressurreição do Imortal. E se o imortal Filho de Deus realmente se submete à prova da morte, não é estranho que tal morte tenha significado de salvação para uma raça condenada. Uma vez que tenhamos certeza da divindade de Jesus, torna-se pouco razoável achar dificuldades em qualquer desses pontos, pois todas as peças se encaixam completamente nos lugares. A encarnação é em si mesma um mistério impenetrável, mas faz com que tudo o mais no Novo Testamento tenha sentido.
II
Os Evangelhos de Mateus e de Lucas contam com detalhes como o Filho de Deus veio ao mundo. Ele nasceu fora de um pequeno hotel, em uma obscura aldeia da Judéia, nos grandes dias do Império Romano. A história é geralmente embelezada quando a contamos Natal após Natal, mas na realidade ela é rude e cruel. A razão de Jesus ter nascido fora do hotel é que este estava cheio e ninguém ofereceu uma cama para a mulher que estava para dar à luz, de modo que ela teve sei bebê no estábulo e o deitou em uma manjedoura. A história é contada sem paixão e sem comentário, mas nenhum leitor consciencioso deixa de se arrepiar com a imagem de maldade e degradação que ela revela. Não é, entretanto, para tirar lições de moral que essa história foi registrada pelos evangelistas. Para eles o ponto principal não está nas circunstâncias em que se deu o nascimento (a não ser como cumprimento da profecia, que seria em Belém: veja Mat. 2:1-6), mas em destacar a identidade da criança. A esse respeito o Novo Testamento revela dois pensamentos. Já os citamos, agora vamos estudá-los mais detalhadamente.
1 – A criança nascida em Belém era Deus.
Mais precisamente, usando a linguagem bíblica, Ele era o Filho de Deus, ou, como a teologia cristã normalmente diz: Deus, o Filho. Note o Filho, não um Filho, como João se refere quatro vezes nos três primeiros capítulos de seu evangelho, a fim de que seus leitores entendam perfeitamente a singularidade de Jesus. Ele era o "unigênito" Filho de Deus (veja João 1:14, 18; 3:16, 18). De acordo com isso, a Igreja cristã confessa: ".Creio em Deus Pai... e em Jesus Cristo, seu único Filho, nosso Senhor".
Os apologistas cristãos às vezes falam como se a afirmação de que Jesus é o unigênito Filho de Deus fosse a resposta final e total a todas as questões sobre sua identidade. Mas, isso dificilmente se dá, pois a própria frase suscita questões e. pode ser facilmente mal interpretada. Esta afirmação de que Jesus é o Filho de Deus significa que existem realmente dois deuses? O cristianismo é então politeísta como os judeus e maometanos afirmam? Ou a frase, "Filho de Deus", significa que Jesus, embora separado entre as criaturas não era pessoalmente divino no mesmo sentido que o Pai? Na igreja primitiva, os arianos defendiam essa idéia, e atualmente os unitarianos, os testemunhas de Jeová, e outros adotam a mesma. Está certo? O que a Bíblia quer dizer quando chama Jesus de Filho de Deus?
Estas questões têm contundido algumas pessoas, mas o Novo Testamento na verdade não aos deixa em dúvida a respeito da resposta que devemos dar a elas. Em princípio, elas foram levantadas e resolvidas ao mesmo tempo pelo Apóstolo João no prólogo de seu evangelho. Parece-nos que ele estava se dirigindo a leitores tanto de formação judaica quanto grega. Ele escreveu, como diz, a fim de que "creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que crendo, tenhais vida em seu nome" (João 20:31). Em todo o seu Evangelho ele apresenta Jesus como o Filho de Deus. Entretanto, João sabia que a frase "Filho de Deus" estava corrompida por associações errôneas na mente de seus leitores.
A teologia judaica fazia uso dela como título para o esperado Messias (humano). A mitologia grega fala de muitos "filhos de deuses", super-homens nascidos da união de um deus com uma mulher humana. Em nenhum dos dois casos a frase revelava a idéia de uma divindade, na verdade essa idéia era completamente excluída. João queria ter a certeza que ao falar sobre Jesus como o Filho de Deus não seria mal interpretado; e que dessem tais sentidos a suas palavras, queria tornar bem claro desde o início que a filiação que Jesus assumia, e que os cristãos Lhe davam era precisamente um caso de divindade pessoal e nada menos do que isso. Daí a razão de seu famoso prólogo (João 1:1-18). A Igreja da Inglaterra faz sua leitura anualmente como a mensagem do dia de Natal, e estão corretos neste uso. Em nenhum lugar do Novo Testamento a natureza e o significado da filiação divina de Jesus estão tão claramente explicados como aqui.
Veja com que cuidado e decisão ele expõe seu tema. Ele não usa o termo "Filho" logo nas sentenças iniciais, ao contrário, fala antes do Verbo. Não há perigo de não ser entendido, os conhecedores do Velho Testamento logo se lembrariam da referência. A Palavra de Deus no Velho Testamento é sua expressão criativa, sua força em ação no cumprimento de seus propósitos. O Velho Testamento retrata a palavra de Deus, a real afirmação de seu propósito, como tendo força em si mesma para realizar aquilo a que se havia proposto. Gênesis 1 relata como na criação "Deus disse. . . Haja. . . e houve . . . " ( Gên. 1:3 ). "Os céus por sua palavra se fizeram . . . pois ele falou, e tudo se fez" (Sal. 33:6-9). A Palavra de Deus é, portanto, Deus em ação.
João toma desta figura e continua falando sobre sete coisas a respeito da Palavra divina:
1) "No começo era o Verbo" (v. l). Aqui está mostrada a eternidade do Verbo. Ele não teve um começo próprio, quando as outras .coisas começaram, ele era.
2) "E o Verbo estava com Deus" (v. l). Aqui o Verbo tem personalidade. A força que cumpre os propósitos de Deus vem de um ser distintamente pessoal, que está em relacionamento eterno de amizade viva com Deus (este o significado da frise) .
3) "E o Verbo era Deus" (v. l ). Aqui está a divindade do Verbo. Embora pessoalmente distinto do Pai, Ele não é uma pessoa; Ele é divino como o Pai o é. O mistério com que nos confrontamos neste verso é o da distinção de pessoas dentro da unidade de Deus.
4) "E todas as coisas foram feitas por ele" (v. 3). Eis o Verbo criando. Ele foi o agente do Pai em todos os atos da criação que este já realizou. Tudo o que foi feito, foi feito através dEle. (Aqui, incidentalmente, está mais uma prova de que Ele, o agente, assim como o Pai, não pertencem à classe das coisas criadas)
5) "E nEle estava a vida" (v. 4). Vemos nesta frase a palavra animando. Não há vida física em toda a criação a não ser através dEle. A Bíblia responde aqui ao problema da origem da continuidade da vida em todas as suas faunas: a vida é dada e mantida pelo Verbo. As coisas criadas não têm vida em si mesmas, mas no Verbo, a segunda pessoa da Divindade.
6) "E a vida era a luz dos homens". (v. 4). Aqui está a palavra reveladora. Dando a vida Ele dá luz também; é o mesmo que dizer, que todo ser humano recebe intimações de Deus apenas pelo fato de estar vivo neste mundo de Deus, e isso, não menos que o fato de estar vivo, é decorrência da ação do Verbo.
7) "E o Verbo se fez carne" (v. 14). Aqui está a encarnação do Verbo. A criança na manjedoura em Belém não era outra senão o Verbo eterno de Deus.
E agora, tendo nos mostrado quem e o que o Verbo é – uma pessoa divina, autor de todas as coisas – João faz uma identificação. O Verbo, ele nos diz, foi revelado pela encarnação, para ser o Filho de Deus. "E vimos a Sua glória, glória como do Unigênito do Pai" (v. 14). Essa identificação é confirmada no verso 18: "O Filho Unigênito que está no seio do Pai... "Assim João estabelece completamente o ponto que estava visando e torna bem claro o que queria dizer quando se referiu a Jesus como o Filho de Deus. O Filho de Deus é o Verbo de Deus; vemos o que o Verbo é, e assim vemos o que o Filho é. Tal é a mensagem do prólogo.
Portanto, quando a Bíblia proclama Jesus como o Filho de Deus, a afirmação é tomada como uma asserção de Sua divindade pessoal e distinta. A mensagem do Natal se baseia no fato surpreendente que a criança da manjedoura era – Deus.
Mas isto é apenas a metade da história.
2 – A criança nascida em Belém era Deus feito homem.
O Verbo se fez carne: um corpo humano real. Ele não deixou de ser Deus; não era menos Deus do que havia sido antes, mas começou a tomar-se homem. Ele não era Deus com menos elementos de Sua divindade, mas Deus e mais tudo que havia tornado seu ao assumir a forma humana. Ele que havia feito o homem, sabia agora o que era ser homem. Ele que havia criado um anjo que se tornou um diabo, assumia agora um estado no qual podia ser tentado na verdade, não podia evitar de ser tentado pelo diabo! E a perfeição de sua vida humana só seria alcançada através do conflito com o diabo. A epístola aos Hebreus, elevando os olhos para a sua glória ascendente, tira grande conforto deste fato. "Por isso mesmo convinha que em todas as coisas se tomasse semelhante aos irmãos. . . Pois, naquilo que ele mesmo sofreu, tendo sido tentado, é poderoso para socorrer os que são tentados" (Heb. 2:17-18). "Porque não temos sumo sacerdote que não possa compadecer-se das nossas fraquezas; antes, foi ele tentado em todas as cousas, à nossa semelhança, mas sem pecado. Acheguemo-nos, portanto, confiadamente, junto ao trono da graça, a fim de recebermos misericórdia e acharmos graça para socorro em ocasião oportuna" (Heb. 4:15-16).
O mistério da encarnação é inexplicável. Não podemos explicá-lo, apenas formulá-lo. Talvez nunca tenha sido expresso melhor do que nas palavras do Credo de Atanásio: "Nosso Senhor Jesus Cristo o Filho de Deus, é Deus e homem; ... Deus perfeito e homem perfeito... que embora seja Deus e homem não é duas pessoas, mas um Cristo; um, não pela transformação da Divindade em carne, mas por ter tomado a humanidade em Deus". Nossas mentes não podem ir além disso. O que vemos na manjedoura é, nas palavras de Carlos Wesley:
"Nosso Deus reduzido ao tamanho de um palmo
Incompreensivelmente fez-se homem.
Incompreensivelmente – seremos sábios se nos lembrarmos disso para evitarmos especulação e adorar com alegria.
III
Como devemos pensar sobre a encarnação? O Novo Testamento não nos encoraja a preocupar nossas mentes com os problemas físicos e psicológicos que surgem, mas apenas a adorar a Deus pelo amor que nos tem mostrado. Pois este foi um ato de grande concessão e auto-humilhação. Ele "subsistindo em forma de Deus", escreveu Paulo, "não julgou por usurpação o ser igual a Deus, antes a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tomando-se em semelhança de homens; e reconhecido em figura humana a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até à morte, e morte de cruz" (Filip. 2:6-8). E tudo isso para a nossa salvação.
Os teólogos têm às vezes se divertido com a idéia de que a encarnação foi original e basicamente realizada com vistas ao aperfeiçoamento da ordem criada, e que seu significado redentor foi, por assim dizer, uma decisão posterior de Deus. Mas como James Denney corretamente insiste: "O Novo Testamento não fala da encarnação de modo algum em separado de sua relação com o sacrifício. . . Não é Belém, mas o Calvário o foco da revelação, e qualquer interpretação do cristianismo que ignore ou negue isso deturpa-o completamente, colocando-o fora de foco" (The Death of Christ, A Morte de Cristo, 1902, p. 235). O significado crucial do berço de Belém está em que ele faz parte da seqüência de passos que levam o Filho de Deus à cruz do Calvário, e não podemos compreender este fato até que o vejamos no seu contexto.
O texto-chave do Novo Testamento para interpretar a encarnação não é, portanto, a declaração de João 1:14 – "O Verbo se fez carne e habitou entre nós", mas a afirmação mais compreensiva que encontramos em II Coríntios 8:9 – "Porque conheceis a graça de nosso Senhor Jesus Cristo, que sendo rico, se fez pobre; por amor de vós; para que pela sua pobreza vos tornásseis ricos". Aqui está contido não apenas o fato da encarnação, mas também seu significado; o ato do Filho de Deus assumir a forma humana é colocado diante de nós de tal modo que nos mostra como devemos colocá-lo diante de nós mesmos e contemplá-lo sempre – não simplesmente como uma maravilha da natureza, mas sim, uma maravilha da graça.
IV
Aqui, entretanto, devemos fazei uma pausa para considerar um uso diferente do que alguns fazem de certos textos de Paulo que já citamos. Em Filipenses 2:7, a frase traduzida por "aniquilou-se a si mesmo" diz literalmente "esvaziou-se" (Authorized Version). Será que isto, juntamente com a declaração de II Coríntios 8:9 que Jesus "se fez pobre" não lança alguma luz sobre a própria natureza da encarnação? Será que não está implícito aí que certa redução da divindade do Filho estava envolvida ao se tornar homem?
Esta é a chamada teoria da Kenosis, pois esta palavra, Kenosis, em grego, quer dizer "esvaziando". A idéia por trás disso é que para assumir totalmente a forma humana, o Filho precisou renunciar a algumas de suas qualidades divinas, do contrário não poderia ter participado da experiência de ser limitado no tempo, no espaço, no conhecimento, e na consciência, coisas essenciais à verdadeira vida humana. Essa teoria foi formulada de diferentes maneiras. Alguns argumentam que o Filho desprezou apenas seus atributos metafísicos (onipotência, onipresença, onisciência), retendo os "morais" (justiça, santidade, verdade, amor); outros afirmam que ao se tornar homem Ele renunciou a todos os seus poderes especificamente divinos, assim como à sua autoconsciência de divindade, embora, no decurso de sua vida na terra Ele tenha retomado esta última.
Na Inglaterra, a teoria da Kenosis foi esboçada pelo Bispo Gore em 1889, para explicar porque nosso Senhor era ignorante daquilo que os críticos do século 19 pensavam saber a respeito do Velho Testamento. A tese de Gore defendia que ao se tornar homem o Filho desistira de seu conhecimento divino de todos os assuntos embora mantivesse uma completa infalibilidade divina em assuntos morais. Dentro dos fatos históricos, entretanto Ele estava limitado às idéias correntes dos judeus, que aceitou sem questionar, não sabendo que nem sempre elas estavam certas. Daí o seu tratamento do Velho Testamento como sendo verbalmente inspirado e completamente verdadeiro, e o ter atribuído o Pentateuco a Moisés e o Salmo 110 a Davi, pontos que Gore julgava insustentáveis. Muitos concordam com Gore neste ponto, procurando uma justificativa para rejeitar a opinião de Cristo sobre o Velho Testamento.
Mas a teoria da Kenosis não pode manter-se; pois, em primeiro lugar, trata-se de uma especulação à qual os textos citados não dão base alguma. Quando Paulo fala do Filho como tendo se esvaziado e tornado pobre, o que ele tinha em mente, como podemos ver pelo contexto em cada caso, é que ele não está desprezando os poderes e atributos divinos, mas a glória e a dignidade divinas "A glória que eu tive junto de ti, antes que houvesse mundo", como Cristo mesmo diz em sua grande oração pastoral (João 17:5). A tradução dada pela Versão Autorizada ao texto de Filipenses está correta. Não há base bíblica para a idéia do Filho ter-se despojado de qualquer aspecto de sua divindade.
Esta teoria levanta também grandes e insolúveis problemas. Como podemos dizer que o homem Cristo Jesus era completamente Deus se lhe faltavam algumas qualidades da divindade? Como podemos dizer que Ele revelou o Pai, se alguns dos poderes e atributos do Pai não estavam nEle? Mais ainda, se, como a teoria supõe, a total humanidade na Terra era incompatível com a divindade não reduzida, provavelmente a mesma coisa acontece no Céu, deduzindo-se que "o homem na glória" perde parte de seus poderes divinos por toda a eternidade. Se, como diz o Artigo 2 Anglicano: "Divindade e Humanidade" estavam na encarnação, unidas em uma Pessoa, indivisível", parece que nesta teoria é inegável a idéia de que a Divindade do Filho perdeu alguns atributos irrecuperáveis na encarnação. Entretanto, no Novo Testamento parece clara e enfática a onisciência, a onipresença e a onipotência do Cristo ressurreto (Mat. 28:18,20; João 21:17; Efés. 4:10). Mas se, em vista disto, os defensores da teoria da Kenosis negaram que estes atributos são incompatíveis com a verdadeira humanidade no céu, que razão, poderão apresentar para crer que essa incompatibilidade existisse na Terra?
Ainda mais, o uso que Gore faz da teoria para justificar os erros atribuídos à parte dos ensinamentos de Cristo, enquanto mantém a autoridade divina no restante não é possível. Cristo declarou em termos compreensíveis e categóricos que todos os seus ensinamentos eram vindos de Deus, que não era mais que o mensageiro de seu Pai. "O meu ensino não é meu e sim daquele que me enviou", "mas falo como o Pai me ensinou", "mas o Pai, que me enviou, esse me tem prescrito o que dizer e o que anunciar. . . As coisas pois, que eu falo, como o Pai mo tem dito, assim falo" (João 7:16; 8:28; 12:49-50). Ele se declarou como alguém "que vos tenho falado a verdade que ouvi de Deus" (João 8:40).
Em face dessas afirmações, só dois caminhos se abrem: ou aceitamos e atribuímos total autoridade divina a tudo o que Jesus ensinou, incluindo suas declarações de Inspiração e autoridade do Velho Testamento, ou as rejeitamos e discutimos a autoridade divina de seus ensinamentos em todos os sentidos. Se Gore quisesse realmente manter a autoridade dos ensinamentos morais e espirituais de Jesus ele não deveria ter questionado a verdade de seus ensinamentos sobre o Velho Testamento; se, por outro lado, ele estava realmente determinado a discordar de Jesus sobre o Velho Testamento, deveria ter sido consistente, e ter em mente a idéia de que se os ensinamentos de Jesus não podem ser aceitos corno foram apresentados, não temos obrigação de concordar com Jesus a respeito de qualquer outra coisa.
Se a teoria da Kenosis for usada com propósito semelhante ao de Gore, prova muita coisa: ela prova que Jesus, tendo renunciado ao seu conhecimento divino, era falível em todos os pontos, e que ao afirmar serem seus ensinamentos vindos de Deus, estava enganando tanto a Si mesmo como a nós. Se vamos manter a autoridade divina de Jesus como mestre, de acordo com suas afirmações, devemos rejeitar a teoria de Kenosis ou pelo menos rejeitar esta sua aplicação.
Na realidade, as próprias narrativas do Evangelho apresentam evidências contra a teoria dá Kenosis. É verdade que o conhecimento de Jesus tanto sobre assuntos humanos como divinos, era, às vezes, limitado. Ocasionalmente ele pedia alguma informação: "Quem me tocou nas vestes?" "Quantos pães tendes?" (Mar. 5:30; 6:38). Ele declara que é tão ignorante quanto seus anjos a respeito do dia marcado para a sua volta (Mar. 13:32). Mas outras vezes Ele mostrou conhecimento sobrenatural. Ele sabe do passado sombrio da mulher samaritana (João 4:15). Sabe que quando Pedro for pescar, o primeiro peixe que pegar terá uma moeda em sua boca (Mat. 17:27). Sabe, sem que ninguém Lhe tenha dito que Lázaro está morto (João 11:11-13 ). Do mesmo modo, de vez em quando mostra força sobrenatural para realizar milagres curando, alimentando e ressuscitando os mortos. A impressão que se tem de Jesus nos evangelhos não é que Ele tenha abandonado completamente o poder e o conhecimento divinos, mas que valia-se de ambos intermitentemente, podendo passar muito tempo sem fazer uso deles. Em outras palavras, a impressão que se tem não é tanto de uma divindade reduzida, mas de capacidades divinas sob controle.
Como podemos pensar nesse retraimento? Certamente, em termos da verdade apresentada com freqüência, particularmente no evangelho de João, a submissão completa do Filho à vontade do Pai. Parte da revelação do mistério da Divindade é que as três pessoas permanecem em uma relação fixa umas com as outras. O Filho aparece nos evangelhos não como uma pessoa divina independente, mas como alguém dependente, que, pensa e age apenas sob a direção do Pai. "O Filho nada pode fazer de si mesmo" (João 5:19-30). "Porque eu desci do céu, não para fazer a minha vontade; e sim a vontade daquele que me enviou" (João 6:38). "Nada faço por mim mesmo . . . Eu faço sempre o que lhe agrada" (João 8:28-29). É da natureza da segunda pessoa da Trindade reconhecer a autoridade da primeira e submeter-se de boa vontade a ela. É por isso que Ele se declara como Filho, e a primeira pessoa como sendo Seu pai. Embora coigual ao Pai em eternidade, poder e glória, é natural que Ele faça a parte de Filho, e encontre prazer em cumprir a vontade de Seu Pai, do mesmo modo que é natural à primeira pessoa da Trindade planejar e iniciar as obras da Divindade e à terceira pessoa proceder do Pai e do Filho para realizar sua ordem conjunta. Assim, obediência do Deus-Homem ao Pai enquanto estava na Terra não era um novo relacionamento ocasionado pela encarnação; mas a continuação, no tempo, do relacionamento eterno entre o Filho e o Pai no céu. No céu como na Terra, o Filho era completamente dependente da vontade do Pai.
Se isto é correto, tudo fica então explicado. O Deus-Homem não tinha conhecimento independente, da mesma forma que agia também independentemente. Assim como Ele não fez tudo o que podia ter feito, porque certas coisas não eram da vontade de Seu Pai (Mat. 26:53), do mesmo modo Ele conscientemente não sabia tudo o que deveria saber, mas apenas o que Seu Pai queria que soubesse. Seu conhecimento, assim como todas as suas atividades, estavam ligados à vontade do Pai. Portanto, a razão de sua ignorância (por exemplo) da data da sua volta, não era por ter desistido do. poder de saber todas as coisas na encarnação, mas porque o Pai não queria que tivesse esse conhecimento enquanto permanecesse na Terra, antes de sua Paixão.
Calvino estava certo ao comentar Marcos 13:32 da seguinte maneira: "Até que ele tivesse cumprido sua missão (de mediador), essa informação não lhe foi dada, mas Ele a recebeu depois de sua ressurreição".
Assim, a limitação do conhecimento de Jesus deve ser explicada, não em termos da maneira de sua encarnação, mas com referência à vontade do Pai para o Filho enquanto este se achasse na Terra. Concluímos, portanto, que assim como há alguns fatos nos evangelhos que contradizem a teoria da Kenosis, não há neles fatos que não sejam explicados mais claramente sem ela.
V
Vemos agora o que significou para o Filho de Deus esvaziar-se e tornar-se pobre. Significa deixar de lado a glória (a Kenosis real); um retraimento voluntário do poder; uma aceitação das dificuldades, isolamento, maus tratos, malícia, incompreensão; e finalmente, a morte, envolvendo uma agonia – tão grande – mais espiritual do que física – que sua mente quase entrou em colapso com a perspectiva dela (veja Luc. 12:50 e a narração do Getsêmani). Isso significava um grande amor pelo homem tão pouco merecedor dele que "pela Sua pobreza, tornou-se rico". A mensagem do Natal contém esperança para a humanidade arruinada – esperança de perdão, esperança de paz com Deus, esperança de glória – porque pela vontade do Pai, Jesus Cristo tornou-se pobre e nasceu em um estábulo, para que trinta anos depois pudesse ser levantado em uma cruz. Essa a mais bela mensagem que o mundo já ouviu, ou ouvirá.
Falamos muito sobre o "espírito do Natal", raramente com um significado maior do que alegrias em termos de relações familiares. Mas, o que dissemos, torna claro que essa frase, na realidade tem um significado muito mais rico. Deve significar a reprodução na vida humana da disposição dAquele. que por amor a nós tornou-se pobre no primeiro Natal. E o próprio espírito do Natal deve caracterizar cada cristão durante o ano inteiro.
É para nós vergonha e desgraça que muitos cristãos hoje – serei mais específico: muitos dos mais fundamentalistas e ortodoxos – vão por este mundo com o espírito do sacerdote e do levita da parábola do Senhor, vendo as necessidades do homens ao seu redor mas (depois de um desejo piedoso e talvez de uma oração, pedindo que Deus possa encontrá-los) desviando seus olhos e passando de largo para o outro lado. Este não é o espírito do. Natal. Não é também o espírito daqueles cristãos – e há muitos assim – cuja ambição na vida parece limitada a construir um belo lar cristão da classe média, fazendo agradáveis amigos cristãos dentro da classe média, criando seus filhos nos corretos moldes cristãos de sua classe, e deixando que grupos das subclasses médias da comunidade, cristãos ou não-cristãos, avancem sozinhos na vida.
O espírito do Natal não transparece no cristão pretensioso, pois é o espírito daqueles que como seu Mestre, vivem inteiramente dedicados ao princípio de se tornarem pobres – gastando e sendo gastos – para enriquecer seu próximo, dando tempo, preocupação, cuidado e interesse para fazer o bem aos outros – e não apenas a seus amigos – de qualquer modo que a necessidade se apresente. Não há muitos que mostrem este espírito como deveria haver. Se Deus, por misericórdia, nos revivifica, uma das coisas que Ele irá fazer será aumentar mais esse espírito em nossos corações e na nossa vida.
Se quisermos um despertamento espiritual individualmente, uma das nossas primeiras providências será procurar cultivar este espírito. "Pois conheceis a graça de nosso Senhor Jesus Cristo, que sendo rico, se fez pobre; por amor de vós para que pela sua pobreza vos tomásseis ricos" II Cor. 8:9). "Tende em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus" (Filip 2.5). "Percorrerei o caminho dos teus mandamentos, quando me alegrares o coração" (Sal. 119:32).
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