Quanto ao relacionamento entre Gênesis 2 e Gênesis 1, já foi indicado que o emprego dos nomes divinos (Elohim e Javé) pode ser reconciliado perfeitamente com a unidade de autoria. Sendo que Elohim (“Deus”) era o nome apropriado para contextos fora da Aliança, Moisés (supondo-se que foi ele o autor do Livro inteiro), pode muito bem ter empregado este nome exclusivamente para o relato da criação no capítulo 1, empregando o nome Javé para a maior parte do capitulo 2, ao tratar da Aliança de obras estabelecida entre Deus e Adão.
Questões têm sido levantadas quanto à seriedade de se aceitar a narrativa inteira sobre Adão e Eva (e a serpente no Jardim do Éden) como história literal. Muitos preferem considerá-la um simples mito ou fábula (“supra-história”, segundo o termo neo-ortodoxo) no qual o colapso moral do homem se descreve através dum episódio fictício escrito como ilustração do mesmo. (Mas, sendo que, de fato o homem é um ser caído, um agente moral com um senso íntimo de culpa, o mito reflete uma verdade sublime, apesar de nunca ter acontecido um episódio isolado deste tipo). Nenhuma objeção decisiva, porém, tem sido levantada contra a historicidade de Adão e Eva, em bases históricas, cientificas ou filosóficas. O protesto tem sido baseado essencialmente em conceitos subjetivos de improbabilidade.
Do ponto de vista da lógica, é praticamente impossível aceitar a autoridade de Romanos 5 (“Por um só homem entrou o pecado no mundo.... Pela ofensa de um, e por meio de um só, reinou a morte.... Pela desobediência de um só homem muitos se tomaram pecadores”) sem aceitar a inferência que há raça humana inteira advém dum único progenitor. Em Romanos 5 há um contraste entre Adão e Cristo. Se, portanto, Cristo era um indivíduo histórico, Adão também o era (senão, o Apóstolo inspirado estava errado). Semelhantemente, Paulo aceita os detalhes de Gênesis 2, e os da tentação e da queda em Gênesis 3, como sendo história literal. Em 1 Timóteo 2:13 e 14 diz: “Porque primeiro foi formado Adão, depois Eva. E Adão não foi iludido, mas a mulher, sendo enganada, caiu em transgressão”. Não há nenhuma dúvida que os autores do Novo Testamento aceitaram a historicidade literal de Adão e Eva. A origem da raça humana é necessariamente assunto de revelação da parte de Deus, visto que nenhum registro escrito poderia remontar a uma época anterior à invenção da escrita. É concebível que o verdadeiro relatório da origem do homem pudesse ter sido transmitido pela tradição oral (e talvez existisse esta tradição até a época de Moisés). Mas, fora da Revelação, registrada por escrito como Escritura inspirada, não poderia haver qualquer certeza quanto à variedade estonteante de lendas da origem do homem conhecidas entre as muitas diferentes culturas da terra, no sentido de saber qual era o relato verdadeiro e digno de confiança. Aqui, o registro inspirado fala dum Adão e duma Eva literais, e não dá a mínima impressão que a narrativa seja mitológica na sua intenção. Certamente Cristo e os Apóstolos receberam-na como sendo história verdadeira.
Alguns escritores modernos, tais como Alan Richardson, compararam a matéria narrativa de Gênesis caps. 1-11 às parábolas do Novo Testamento. “Uma parábola é uma estória que pode ser ou não ser verdadeira, literalmente falando (ninguém pergunta se literalmente “aconteceu” o incidente do Bom Samaritano); mas é certo que transmite um sentido além de si mesma. Implica em que, além das palavras da estória que nossos ouvidos físicos captam, há um sentido compreensível somente à
nossa audição espiritual” (A. Richardson, “Gênesis I-IX” SCM, 1953, p. 28). Mas esta comparação com as parábolas do Novo Testamento envolve a pressuposição que o autor de Gênesis tinha a intenção de que a narrativa dos capítulos 1- 11 tenha sido mera analogia ou comparação, para ilustrar alguma verdade teológica, sem desejar que seus leitores tivessem a impressão que estes episódios narrados tivessem acontecido na história real. A introdução característica às parábolas de Jesus era: “O reino de Deus é como...”. Sempre há algum ensinamento da doutrina ou da ética que
está sendo explicada ao ouvinte, e apela-se a uma ilustração para dar clareza ao ponto. Mas não há nenhuma estrutura deste tipo nas narrativas e listas genealógicas de Gênesis 1-11. Em nenhum trecho se declara que a origem do mundo ou da raça humana sela como algo análogo. Uma parábola nunca é explicada em termos de si própria; sempre envolve uma analogia tirada de outra coisa semelhante. Assim como nunca teria sido escrito: “O reino de Deus é como o reino de Deus”, assim também não pode ter havido a intenção de implicar que “A origem da raça humana é como a origem da raça humana”, ou “O Dilúvio universal é como o Dilúvio universal”. Vê-se, portanto, que aqui falta o elemento parabólico, tomando insustentável a interpretação de Richardson.
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